Dois bilhões de pessoas, ou um terço da população da Terra. Esse é o número de pessoas no mundo que em algum momento da vida foram ou estão contaminadas pelos vírus de qualquer tipo de hepatite, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Para especialistas brasileiros, a falta de políticas públicas em relação à doença — caracterizada por uma inflamação no fígado e que pode levar à morte dependendo do caso — e o desconhecimento de grande parte da população sobre os riscos de contaminação são as principais causas da ampliação do contingente infectado por um mal que mata 1 milhão de pessoas a cada ano no planeta.

Os dados foram divulgados na antevéspera do Dia Mundial da Hepatite, instituído em 2010 pela OMS para alertar as autoridades de saúde pública sobre os perigos de mais uma epidemia que ameaça a humanidade. “Essa é uma doença crônica ao redor do mundo inteiro, mas, infelizmente, há uma consciência muito baixa sobre ela, mesmo entre os responsáveis pelas políticas de saúde”, alertou o especialista em hepatite da organização Steven Wiersma em uma entrevista coletiva na sede da OMS, em Genebra, na Suíça. “Somadas (as hepatites), elas mantêm um peso imenso nos sistemas de saúde, com um potencial para causar epidemias de problemas mais graves (de doenças colaterais), como cirrose e câncer”, acrescentou.

O nome hepatite engloba uma série de doenças hepáticas. Apesar de também poderem ser originadas por uso de medicamentos e estilo de vida, entre as suas principais causas da hepatite estão os vírus, que dão origem às cinco variáveis da doença reconhecidas pela comunidade médica no mundo: A, B, C, D e E, que possuem diversas formas de transmissão — desde o sexo sem proteção à contaminação por água pela falta de saneamento básico ou por meio de água contaminada de enchentes, passando pelo uso de seringas e contato sanguíneo (veja arte).

Atendimento precário
A OMS alerta ainda sobre a necessidade de se promover tanto o diagnóstico — uma importante arma para barrar as novas infecções — quanto a ampliação de tratamentos e de cobertura de imunização por meio de vacinas para a prevenção das variantes da doença já disponíveis. Segundo a entidade, é necessário universalizar o acesso a essas ferramentas especialmente para as populações de nações mais pobres da África, do Sudeste Asiático e da América Latina, onde ocorrem a grande maioria dos casos de todas as formas de hepatite e o mais elevado índice de óbitos.

Segundo o infectologista Evaldo Stanislau, a altíssima frequência de um dos tipos da doença se deve a pouca oferta e à má qualidade do pré-natal, especialmente em países da Ásia, como Índia e China. “Enquanto nos adultos a hepatite B tem apenas 10% de chance de se tornar crônica, nas crianças essa chance é de 90%”, relata o especialista. Ao se tornar crônica, o indivíduo passa a carregar o vírus para o resto da vida, aumentando a chance de transmiti-lo. “Como o vírus tipo B pode ser transmitido de mãe para filho, na hora do parto, por exemplo, em locais onde o atendimento para gestantes não é adequado, a prevalência costuma ser bastante alta”, completa Stanislau.

No quadro da enfermidade apresentado pela OMS cerca de 15% dos casos no mundo que se tornam crônicos são aqueles que exigem mais atenção dos governos e da população. Segundo a instituição, para a doença ser considerada crônica, é necessário que, seis meses após o contágio, o paciente ainda apresente carga viral. “Nesses casos, existe a possibilidade de que o vírus evolua para algo mais grave como uma cirrose hepática ou mesmo para um câncer no fígado”, alerta Stanislau.

Vacina eficaz
Tanto a cirrose quanto o câncer podem levar à morte ou à incapacitação permanente, lembra a Organização Mundial de Saúde. Se o vírus B é o mais comum, com 500 milhões de novos casos por ano, em segundo lugar vem a variante C, com 150 milhões de notificações anuais. “No caso da hepatite B, temos uma forma extremamente eficaz de prevenção, que é a vacinação”, explica Maria Lúcia Ferraz, diretora da Casa das Hepatites, ambulatório especializado na doença ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Como a maioria das doenças ligadas ao fígado, as hepatites se desenvolvem de forma silenciosa. “Quando os sintomas aparecem, é porque o órgão já está muito debilitado. Além disso, mesmo que esses surjam de forma precoce, em geral os sinais são brandos”, constata Maria Lúcia. Dessa maneira, a menos que o caso evolua para a forma sintomática, a maioria das pessoas não sabe que está com hepatite. Há casos em que a doença demora de 10 a 20 anos ou mais para se tornar evidente por meio de sintomas. “Pode-se carregar o vírus sem saber por vários anos. Mas, mesmo que o mal não se manifeste, a pessoa pode transmitir a doença”, alerta a médica da Unifesp.

Apesar da tendência de queda de casos no Brasil e no mundo devido a medidas de profilaxia e prevenção isoladas, a especialista alerta, contudo, para o fato de que há um público de alto risco que precisa de uma atenção especial, os usuários de drogas injetáveis. “Não existem políticas públicas de saúde direcionadas a esse público e hoje a contaminação por agulha compartilhada já é numericamente bastante importante”, destaca a diretora da Casa das Hepatites. “Sem dúvida, a hepatite é um problema maior do que a maioria das pessoas imagina, mas é possível barrar seu avanço com ações coordenadas”, ressaltou.

(Max Milliano Melo, Correio Braziliense)